Ministério ou Secretaria, que cultura é essa?

Que a cultura é algo importante para um país não há dúvida, mas o debate dos últimos dias revela a intimidade de uma classe que se distanciou do compromisso social que arte tradicionalmente exige daqueles que a fazem. Que cultura é esta que estão defendendo?

Renúncias fiscais a projetos totalmente sustentáveis, que lucram milhares por ano, patrocínios a projetos que biografam líderes petistas, auditorias do TCU apontando despesas sem comprovação no montante de R$ 3,8 bilhões. Essa foi a tônica reservada ao Ministério da Cultura e não recordo de um único inconformismo da classe artista acerca desses registros.

Entre os beneficiários de recursos da Lei de Rouanet (antiga Lei de Incentivo à Cultura), temos, por exemplo, a aprovação do documentário sobre Brizola, enquanto o de Márcio Covas foi negado. Temos o filme que contará a história de José Dirceu, com autorização de captação de R$ 1,5 milhão. Inacreditáveis R$ 4,1 milhões para uma turnê de Luan Santana sob o fundamento de “democratizar a cultura sertaneja”. Mais R$ 1,08 milhão para uma turnê do Detonautas, de Tico Santa Cruz. Até a porquinha Peppa Pig teve um pedacinho aprovado, R$ 1,8 milhão. São inúmeras extravagâncias e peripécias das quais os casos citados são apenas exemplos. Que cultura é essa?

Essa é a cultura que está levando artistas agraciados com recursos públicos em projetos lucrativos a gritar pela troca do formato de Ministério para Secretaria? Com um país em frangalhos, não seria lógico, razoável e necessário priorizar as demandas de primeira ordem?

A saúde do país, que já respirava por aparelhos, caminha na direção de um enterro dramático. De um ano para cá, 1,4 milhão de usuários cancelaram seus planos de saúde e migraram para o sistema público, que já não dava conta do contingente menor.

Na educação, as escolas não cumprem o seu papel há tempo, e agora não mais convencem a meninada a deixar o pão com manteiga de casa para enfrentar horas de pau de arara (conceito vulgar atribuído ao transporte escolar, dada sua extrema precariedade) sem saber se será oferecido cardápio equivalente na escola, quiçá se terá algum cardápio. Como falar em cultura se a população não sabe ler, muito menos compreender, e quanto mais interpretar?

Com os R$ 3,8 bilhões “desaparecidos” apontados pelo TCU, 95 mil casas populares poderiam ter sido construídas. A quantia equivale, a título de exemplo, a quase duas vezes o orçamento da pasta da cultura para o exercício de 2010.

O momento exige bom senso e dever cívico. O Estado Brasileiro é muito maior do que arrecada, o que impõe a necessidade de cortes e remodelação na estrutura administrativa. E isso não significa o fim da cultura, mas talvez a oportunidade de valorizá-la, retirando-a do palco político regido pelo trágico presidencialismo de cooptação, reservando seus recursos para a manutenção do apoio à cultura certa. O que alguns agraciados artistas, e falsos cidadãos, alardeiam sobre a troca no formato da cultura, de ministério para secretária, mais que uma grande bobagem, é um desserviço à nação que revela uma leitura egoísta desses formadores de opinião, atentos apenas a negócios particulares.

Perdemos a capacidade de pensar. É preciso reagir, urgentemente, sob pena de o Brasil virar um circo sem méritos e com a capacidade cada vez mais reduzida para acolher seus palhaços (o povo).

* Escrito por Rogério de Almeida Fernandes, Auditor do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE), Graduado em Contabilidade pela Universidade Federal da Paraíba e em Direito pela Faculdade dos Guararapes. Pós-graduado em Direito Público com foco no Controle Externo pela Escola da Magistratura de Pernambuco. Coautor do livro Vereadores (Reflexões acerca dos entendimentos dos Tribunais de Contas e Cortes Judiciárias).

Cultura não sabe o destino de R$ 3,8 bi da Lei Rouanet – link

1 comentário

  1. Rogéro Giessel

    http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/id/1334728

    Os artistas brasileiros e a Lei Rouanet
    8.4.2016 – 10:18

    Artistas em prol da legalidade vêm sendo criticados por se beneficiarem de incentivos fiscais via Lei Rouanet. A acusação genérica: todos defendem o governo porque se beneficiam desta legislação e são sustentados com dinheiro público. Essa acusação passou a ser uma bandeira de ódio a muitos artistas e de criminalização da principal lei de incentivo à cultura existente hoje no Brasil.

    Em carta pública, o diretor teatral Aderbal Freire Filho, os atores Gregorio Duvivier, Letícia Sabatella e Wagner Moura, e o músico Tico Santa Cruz defendem a Lei Rouanet, ressaltam sua importância e destacam que o mecanismo, desde sua criação, é utilizado por artistas de qualquer orientação política, independentemente de apoiarem o governo vigente ou não.

    Leia abaixo a carta na íntegra:

    Entre os artistas que defendem a legalidade existem posições diferentes em relação ao governo de Dilma Rousseff. A maioria deles, aliás, faz sérias críticas ao governo e a muitas das suas posturas. No entanto, todos convivem com essa diversidade de posições numa mesma luta em defesa do estado de direito. O que une a todos, além dessa defesa intransigente, é a expectativa de um debate político com menos ódio e mais ideias. Também nenhum deles é contra o combate à corrupção, muito pelo contrário, defendem investigações judiciais e policiais despolitizadas, que façam do combate à corrupção uma realidade e não apenas uma bandeira em muitos casos empunhada por corruptos.

    A recusa a enxergar as diferenças de opiniões dos artistas que têm em comum a defesa da legalidade fortaleceu uma visão redutora, que tem dado margem a uma acusação genérica, partindo de um pressuposto falso. O pressuposto: são todos governistas. A acusação genérica: todos defendem o governo porque se beneficiam da Lei Rouanet e são sustentados com “nosso dinheiro”. Essa acusação passou a ser a principal bandeira do ódio aos artistas.

    Não são todos governistas: todos defendem o estado de direito. Mas todos – os que não são governistas, os que são e os que defendem o governo, com restrições – não fazem a defesa da legalidade por interesse nas leis de incentivo à cultura. Aos que cometem esse crime de difamação bastaria dizer: os maiores beneficiários da Lei Rouanet são empresários de grandes e lucrativos eventos artísticos e de produções milionárias, a maioria deles afinados com políticos que defendem o golpe, o que é fácil de comprovar.

    De uma vez por todas, contra esse crime de difamação, artistas legalistas oferecem dados objetivos que desmontam a falácia dessa acusação. Para começar, selecionamos alguns trechos de nota de esclarecimento do próprio Ministério da Cultura.

    O Ministério da Cultura esclarece que (…) “a concessão de incentivo fiscal a projetos culturais é uma possibilidade disponível a qualquer cidadão brasileiro que atua na cultura. Sancionada em 1991 e, portanto, já executada por diversos governos, a Lei Rouanet implementou o mecanismo de incentivo fiscal como principal fonte de financiamento à cultura no Brasil. Trata-se de estímulo à participação do mercado e da sociedade no aporte de recursos a projetos culturais, podendo posteriormente deduzi-los do seu imposto de renda. Não há, portanto, repasse direto de recursos para nenhum projeto aprovado por meio do incentivo fiscal: quem decide o financiamento são as empresas ou cidadãos que patrocinam ou doam aos projetos. A decisão não é do governo. (…) A análise dos projetos submetidos atesta a adequação do projeto aos parâmetros legais do mecanismo, sempre através de critérios objetivos, o que impede quaisquer tipos de preferência ou censura, independentemente do governo que esteja em atuação.”

    Uma lei para todos, como está claro no seu corpo. Diversos artistas que se posicionaram claramente a favor do impeachment conseguem patrocínios por meio da Lei e isso é correto e democrático. A Lei Rouanet é de 1991, a do Audiovisual de 1993, portanto, já executadas desde muito antes dos governos do PT.

    E é fundamental observar que, quando se anuncia que um artista está autorizado a captar determinada quantia via lei de incentivo, o que se está dizendo apenas é que a partir daí se iniciará uma via crucis do artista pelos departamentos de marketing de empresas, em busca desse financiamento. As empresas é que vão decidir se querem ou não investir parte de seu imposto devido naquela obra. Muitas vezes, essa peregrinação não dá em nada, já que são poucas as grandes empresas que investem na Lei Rouanet. Ou seja, o Governo apenas autoriza a captação, ele não entrega o dinheiro, nem determina qual artista será escolhido pela empresa patrocinadora.

    Outra ideia falaciosa é a de que o dinheiro usado na Lei Rouanet poderia estar sendo aplicado em escolas e hospitais. Esse argumento, de um lado, representa a opinião, herdada do fascismo, dos que acham que a cultura não é algo que mereça investimentos públicos; de outro lado, é simplesmente mentiroso. Não existe a possibilidade de se tirar dinheiro de um Ministério para aplicar em outro. E, além disso, o dinheiro da lei Rouanet não sai do orçamento do Ministério da Cultura. São impostos devidos por empresas ou pessoas físicas que, se quiserem, podem direcionar respectivamente 6% e 4% desse imposto para uma atividade cultural. E, sobretudo, é preciso destacar que a cultura, ao contrário do que pretende esse argumento falacioso, é complementar à educação e à saúde.

    Para que a lei seja aperfeiçoada, essa dinâmica que passa para os departamentos de marketing das empresas a decisão sobre quais obras devem ser financiadas precisa ser mais bem regulada, porque geralmente as empresas optam por associar suas marca a obras “mais comerciais” ou a artistas mais conhecidos.

    Também não é demais repetir que diversos setores produtivos do País se beneficiam de incentivo fiscal.

    Enfim, as leis de incentivo têm tido um papel fundamental na formação da identidade cultural do país, nos últimos 25 anos, e é inadmissível que elas sejam distorcidas de forma criminosa perante a opinião pública. Praticamente todos os filmes brasileiros feitos desde a retomada do nosso cinema no final dos anos 90 foram beneficiados pela lei do audiovisual e não há nenhuma razão para que se pense que isso tenha sido uma coisa nociva para o País.

    A propagação da ideia absurda de que artistas têm seus posicionamentos políticos comprados pelo Governo, pelo simples fato de fazerem parte de um setor produtivo beneficiado por incentivos fiscais, precisa ser, pelo bem da verdade, combatida imediatamente. Seria importante que os artistas que são a favor do impeachment também viessem a público defender os incentivos que possibilitaram suas criações ao longo dos últimos anos. É dever dos artistas brasileiros, de todos eles, reagir a essa tentativa torpe de criminalizar as leis de incentivo a cultura no Brasil.

    Carta assinada por:
    Aderbal Freire Filho
    Gregorio Duvivier
    Leticia Sabatella
    Wagner Moura
    Tico Santa Cruz

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