O processo de impeachment é legítimo? Prospera a tese de que pode haver golpe?

O Brasil vivencia um momento de bastante turbulência no campo político, tendo como principal razão a discussão acerca do afastamento da Presidente da República, que tramita, de forma acelerada, no Congresso Nacional. Alguns defendem e outros condenam a iniciativa. O debate, na verdade, é muito frágil, movido, na grande maioria dos casos, por paixões. Mas, afinal, tecnicamente, é legítimo o processo de impeachment?

De início, é necessário reconhecer que os fatos e fundamentos alegados no pedido de impeachment, em sua maioria, não são de fácil compreensão e leitura, o que é natural em matéria orçamentária, fiscal e contábil, mas os especialistas da área podem, sem dificuldade, e com precisão, discorrer sobre o assunto.

A despeito das menções a diversos episódios de corrupção narrados pela imprensa, que estão sendo apurados pela operação Lava Jato, lastreiam o pedido de impeachment as chamadas “pedaladas fiscais” e abertura de créditos orçamentários pela Presidente da República, sem autorização legal.

Acerca das pedaladas, pesa contra a Presidente o julgamento do Tribunal de Contas (TCU) que reconheceu a irregularidade nas transações entre a União e os bancos públicos (Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES). O TCU concluiu que a União deixou de repassar os devidos recursos aos bancos públicos, e estes usaram recursos próprios para o pagamento de despesas de responsabilidade da União. Em outras palavras, os bancos públicos assumiram despesas da União relativas a juros e taxas de safra agrícola (Plano Safra), juros do Programa de Sustentação do Investimento (PSI), dispêndios relativos ao Programa Bolsa Família, ao Seguro-Desemprego e Abono Salarial, utilização de valores do FGTS sem a devida recomposição.

Tais operações, nitidamente, caracterizam-se como operações de créditos realizadas pelo ente controlador (União) e as instituições financeiras por ele controladas (Banco do Brasil, Caixa e BNDES), o que é vedado pelo art. 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal, e a não liquidação dessa operação de crédito até o final do exercício contraria também o art. 38 (em diversos incisos) do citado diploma.

O argumento do governo no sentido de que tais operações são tradicionais e marcam os exercícios e/ou governos anteriores é, em absoluto, improcedente. Atrasos eventuais e extemporâneos são descasamentos “normais” e “possíveis”.  Mas o gráfico apresentado pelo TCU na oportunidade do julgamento das contas da Presidente da República não deixam dúvida que a situação registrada no segundo semestre de 2013 e em praticamente todo o exercício de 2014 é algo singular, nunca visto, de relevante e significativo impacto nas contas públicas, sobretudo porque, conforme também concluiu o TCU, não houve o devido registro de tais fatos na contabilidade e, especificamente, o não reconhecimento de tais operações na Dívida da União, o que compromete a verificação do cumprimento das metas e resultados estabelecidos pela Lei Orçamentária.

Abaixo, segue o gráfico apresentado pelo Tribunal de Contas, quando deixa clara a distinta situação verificada nos exercícios de 2013 e 2014:TCU - pedaladasAssim, além de caracterizar operações de créditos ilegais entre a União e instituições financeiras por ela controladas, como bem pontua o Procurador do Tribunal de Contas da União, Júlio Marcelo de Oliveira, os passivos da União oriundos dos referidos atrasos não estavam sendo computados na Dívida do Setor Público, inviabilizando a apuração dos resultados primário e nominal, para fins de avaliação do cumprimento das metas fiscais estabelecidas pela lei de diretrizes orçamentárias (art. 4º, § 1º, da Lei Complementar n.º 101/2000). Ainda conforme o Procurador do TCU, tais operações alcançariam, no levantamento daquela oportunidade, mais de R$ 40 bilhões (Processo TC n.º 021.643/2014-8).

Sem o reconhecimento das citadas operações, o Governo Federal gastava mais do que podia, e do que estava autorizado, uma vez que os resultados primário e nominal apresentavam valores mais confortáveis, “maquiados”, diferentes dos reais, permitindo que a União deixasse, por exemplo, de efetivar a limitação de empenho e movimentação financeira (contendo o avanço das despesas públicas), quando, ao final de um bimestre, fosse verificado que as metas do resultado primário e nominal poderiam não ser cumpridas, determinação contida no art. 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Inegavelmente, os resultados primário e nominal não foram observados durante o exercício de 2014, conforme denunciam os atos do próprio governo, a exemplo da Mensagem n.º 365, de 10 de novembro de 2014, encaminhada ao Congresso Nacional, propondo uma mudança na meta de resultado primário, reduzindo-o a um montante de R$ 10,1 bilhões, e que não foi, de toda forma, observado ao final, tendo em vista que as “pedaladas fiscais” não foram reconhecidas ao final do ano, e, conforme já se sabe, adentraram no exercício de 2015, o que ocasionou a emissão de alerta à Presidência da República por parte do TCU.

De forma objetiva, a Constituição Federal, em seu art. 85, inc. VI, estabelece como crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra (…) a lei orçamentária.

O art. 4º da Lei n.º 1.079/50 (Lei do Impeachment) possui idêntica redação do texto constitucional, mas há também outras previsões que foram introduzidas pela Lei n.º 10.028/00, a fim de dar efetividade à Lei de Responsabilidade Fiscal. Como exemplo destas outras previsões, podemos citar:

CAPÍTULO VI

DOS CRIMES CONTRA A LEI ORÇAMENTÁRIA

Art. 10. São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária:

(…)

4 – Infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária.

(…)

7) deixar de promover ou de ordenar na forma da lei, o cancelamento, a amortização ou a constituição de reserva para anular os efeitos de operação de crédito realizada com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei; 

8) deixar de promover ou de ordenar a liquidação integral de operação de crédito por antecipação de receita orçamentária, inclusive os respectivos juros e demais encargos, até o encerramento do exercício financeiro; 

9) ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de operação de crédito com qualquer um dos demais entes da Federação, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que na forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente;

Lei n.º 1.079/50

Ademais, acrescente-se ainda que, além dos crimes de responsabilidade, de natureza orçamentária, discriminados no art. 10, a Lei n.º 1.079/50 também prevê como crime de responsabilidade, contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos (capítulo VII), a abertura de crédito sem fundamento em lei ou sem as formalidades legais (art. 11, item 02) e a contração de empréstimo ou efetuação de operação de crédito sem autorização legal (art. 11, item 03).

CAPÍTULO VII

DOS CRIMES CONTRA A GUARDA E LEGAL EMPREGO DOS DINHEIROS PÚBLICOS

Art. 11. São crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos:

(…)

2 – Abrir crédito sem fundamento em lei ou sem as formalidades legais;

3 – Contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal;

Lei n.º 1.079/50

No que se refere à abertura de créditos orçamentários, também pesa contra a Presidente o julgamento do Tribunal de Contas (TCU) que reconheceu a irregularidade na abertura de créditos suplementares, não numerados, no montante de R$ 18,4 bilhões, sem autorização legal e sem a verificação prévia de cumprimento das metas de resultado primário estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias. A necessidade de autorização legislativa para abertura dos créditos suplementares é exigência da Constituição Federal (art. 167, inc. V), e a verificação e o exame da compatibilidade de tais créditos com as metas de resultado primário estabelecidas é condição estabelecida pelo art. 4º da Lei Orçamentária de 2014 (Lei n.º 12.952/2014).

Seção III

Da Autorização para a Abertura de Créditos Suplementares

Art. 4o Fica autorizada a abertura de créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, excluídas as alterações decorrentes de créditos adicionais, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2014 e sejam observados o disposto no parágrafo único do art. 8º da LRF e os limites e as condições estabelecidos neste artigo, vedado o cancelamento de quaisquer valores incluídos ou acrescidos em decorrência da aprovação de emendas individuais apresentadas por parlamentares, para o atendimento de despesas:

(…)

Lei 12.952/2014

Descumpridos os requisitos legais que autorizam a abertura dos créditos orçamentários, resta claro a correta caracterização do crime de responsabilidade previsto na Lei n.º 1.079/50, nos seguintes termos:

CAPÍTULO VI

DOS CRIMES CONTRA A LEI ORÇAMENTÁRIA

Art. 10. São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária:

(…)

6) ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal;

Lei n.º 1.079/50

A Mensagem n.º 365, de 10 de novembro de 2014, encaminhada ao Congresso Nacional, propondo uma mudança na meta de resultado primário, foi uma confissão, ainda que parcial, de que a meta não estava sendo cumprida e que jamais poderia fechar o ano no montante estabelecido inicialmente, e que, de fato, não fechou, tendo em vista que as “pedaladas fiscais”, conforme já se sabe, adentraram no exercício de 2015. Mas a prova final de que as metas, e, consequentemente, a Lei Orçamentária não foi cumprida, foi o reconhecimento, por parte do Governo Federal, do montante, incialmente, de pouco mais de R$ 50 bilhões de operações irregulares e não reconhecidas, e depois, conforme Ministério da Fazendo informou, em 30/12/2015, que os pagamentos, em 2015, relativos às pedaladas, já somariam R$ 72,4 bilhões.

Mais importante, e como já foi adiantado, a irregularidade na abertura de créditos suplementares foi confirmada pelo Tribunal de Contas da União, nos autos do Processo TC-005.335/2015-9:

17.1.2. Abertura de créditos suplementares, entre 5//11/2014 e 14/12/2014, por meio de Decretos Não Numerados 14028, 14029, 14041, 14042, 13060, 14062 e 14063, incompatíveis com a obtenção de resultado primário então vigente, em desacordo com o art. 4º da Lei Orçamentária Anual de 2014, infringindo por consequência o art. 167, inc. V, da Constituição Federal, e com a estrita vinculação dos recursos oriundos do excesso de arrecadação e superávit financeiro, contrariando o parágrafo único do art. 8º da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Como se verificou, sobram hipóteses legais que acolhem as “pedaladas fiscais” e a abertura de créditos orçamentários (nas condições aqui comentadas) como crime de responsabilidade. O processo de impeachment é, portanto, legítimo.

São graves as irregularidades que fundamentam o pedido de impeachment, e as consequências delas são de fácil percepção. Hoje, o Estado Brasileiro habita uma região de absoluto descontrole das contas públicas, com danos que vão desde a paralisia estatal ao contundente arrefecimento da atividade produtiva, gerando, dentre outros, desconfiança, desemprego e perda do poder aquisitivo do trabalhador.

O afastamento da Presidente da República é uma questão que compete ao Poder Legislativo, não sendo muito ressaltar que esse processo, que é político-administrativo, é mais político do que jurídico. Ou seja, não obstante o procedimento a ser seguido deva observar regras formais estabelecidas, não há necessidade de motivações jurídicas na decisão de cada parlamentar, até por questões obvias de formação, dado não ser tratar de juízes, mas tão somente representantes do povo.

A Presidente da República foi alertada pela impressa nacional, que noticiou, por diversos veículos, o cometimento de irregularidade na gestão orçamentária e fiscal do Governo Federal, e foi com base nessas notícias que o Ministério Público do Tribunal de Contas da União solicitou apuração dos fatos veiculados. A despeito dos alertas, a Presidente continuou gastando o que não tinha em pleno ano eleitoral e pegou dinheiro proibido dos bancos como se fosse do governo.

Por fim, é forçoso concluir que não há hipótese de haver golpe. O que poderá haver é o impeachment, instituto de previsão constitucional, cujo pedido formulado encontra-se devidamente fundamentado, cabendo ao Congresso Nacional, tão somente, observar a “liturgia” processual e realizar o julgamento político que lhe convier.

O exercício pleno das atribuições parlamentares é condição para a afirmação da democracia e para a consolidação do Congresso Nacional como sede de um Poder Legislativo legitimamente constituído.

* Escrito por Rogério de Almeida Fernandes, Auditor do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE), Graduado em Contabilidade pela Universidade Federal da Paraíba e em Direito pela Faculdade dos Guararapes. Pós-graduado em Direito Público com foco no Controle Externo pela Escola da Magistratura de Pernambuco. Coautor do livro Vereadores (Reflexões acerca dos entendimentos dos Tribunais de Contas e Cortes Judiciárias).

3 comentários

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  2. Ivan

    Muito interessante o artigo.
    Voce poderia disponibilizar a fonte do primeiro grafico?
    Fui na pagina do TCU porém nao consegui encontra-lo.

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