Calote dos precatórios e alteração no teto de gastos

Uma proposta indecente, pejosa e inequivocamente eleitoreira

O Governo deliberadamente deixou a inflação correr no começo do ano. Embora tivesse água e bombeiro disponíveis para atacar o fogo do dragão (inflação), não apenas o deixou livre, como também adotou ações de incentivo, além de discursos incendiários, afrontosos, que espalhavam insegurança, dando ensejo a repercussões imediatas, como, por exemplo, na cotação do dólar, componente / base de diversos produtos comercializados no país, com destaque para os combustíveis.

O Banco Central, em claro afago ao mandatário, além de levar a taxa de juros ao insustentável patamar de 2%, relutou a adotar uma postura firme na condução da política monetária. O resultado foi muito ruim, e a inflação alta, desejada para o primeiro semestre de 2020 (vou explicar mais a frente), invadiu o segundo semestre com um vigor ainda mais forte.

O governo desejava ver uma inflação alta no primeiro semestre, isso porque, com a regra do teto dos gastos públicos, estabelecida no Governo Temer, as despesas previstas no orçamento de 2022 (próximo ano) teriam um limite corrigido pela inflação de jul/19 a jun/20 (12 meses, sendo 06 relativos ao primeiro semestre de 2021), por força do art. 107, § 1º, inc. II, da Constituição Federal. Ou seja, o Governo cruzou os braços e estimulou o aumento da inflação para que pudesse ter a permissão para gastar mais em 2022. Do outro lado, o das receitas, o efeito inflacionário, por si só, já promove naturalmente o aumento da arrecadação (inflação corrige os preços e, por conseguinte, os tributos que incidem sobre eles).

Agora, como se não bastasse a perda do valor da moeda, o governo busca se valer ainda mais de sua incompetência e/ou inércia intencional, alterando a fórmula de cálculo do teto de gastos, mudando o intervalo da inflação que reajusta o teto de gastos, ou seja, o limite para os gastos do próximo ano. Em outras palavras, no lugar de utilizar a inflação de jul/19 a jun/20, passaria a usar o índice relativo a jan/20 a dez/20, cujo resultado é muito maior, o que elevaria o teto de gastos para 2022 a um patamar muito superior àquele período.

Como se não bastasse, além de alterar a regra do teto, o governo propõe “pedalar” a maior parte dos precatórios previstos para 2022, uma espécie de “venda casada”. Digo vendo como forma de os deputados e senadores melhor se situarem, já que são bem familiarizados com o termo “venda”.

Fala-se num espaço de R$ 90 bilhões, mas não é de hoje que Paulo Guedes e sua equipe falseiam previsões, maquiam dados, inclusive os impactos orçamentários de suas propostas. É assim, pelo menos, desde a reforma da previdência, que, no seu primeiro ano, apresentou resultado bem diverso da “previsão”, sobretudo na parte relativa aos militares. Nada bate com nada. Hoje, seus ébrios discursos de futurologia não convencem nem os mais incautos. Além da previsão maquiada, ela já está desatualizada, pois considera um quadro de inflação a 9,7%, quando já se sabe que o índice fechará em algo próximo a 1% acima disso. Os números mais adequados falam a favor de um espaço de R$ 100/110 bilhões.

A PEC que busca alterar o teto de gastos não é diferente. O governo, num movimento de anarquia fiscal que ele acusava ser monopólio da esquerda, propõe uma medida inequivocamente eleitoreira, apropriando-se de um discurso social de esquerda com vistas a um público que ele sempre fez questão de menosprezar. A narrativa é focada na necessidade de conceder o (eleitoreiro, embora necessário) auxílio aos desamparados no valor de R$ 400,00, que seria temporário, valendo apenas durante o ano eleitoral (2022).

Qualquer atento sabe que a manobra orçamentária proposta pelo governo (mudança do teto e calote dos precatórios) produz valores muito maiores do que o necessário para compor o novo programa social (estimado em R$ 60 bilhões, que já tem como fonte, parcial, os valores utilizados pelo Bolsa Família, ou seja, de fonte nova demanda algo em torno de R$ 40 bilhões. O custo do novo programa social caberia numa solução bem menor do que a anarquia fiscal proposta pelo governo. Além do auxílio brasil, a proposta abre espaço para uma farra de mais 70 bilhões, à revelia da dramática situação fiscal e da crise de confiança que abate o país.

O próprio governo, amedrontado com sua desaprovação, correndo risco de ver seu desejo barrado pelo Senado, não conteve a ansiedade e revelou que pretende conceder aumento a servidores, se aprovada a PEC (proposta de Emenda Constitucional que prevê as manobras orçamentárias). Não é muito lembrar que a representativa dos servidores públicos no Congresso é uma das mais altas.

Estima-se que para cada 1% de aumento o impacto possa alcançar R$ 04 bilhões (o governo argumenta que seriam R$ 03 bilhões, no conhecido exercício de maquiagem da circense equipe econômica). A ideia é um reajuste na casa de 10%, ou seja, um impacto de R$ 40 bilhões (ou R$ 30 bilhões, pelos rabiscos falaciosos do governo).

A desonestidade do discurso do governo é insultuosa. A desfaçatez eleitoreira desafia obras e tentativas anteriores, o ponto de não se dar nem ao trabalho de guardar a camuflagem. O custo do aumento dos servidores é pouco menor que o valor do calote dos precatórios, por muitos chamado com delicadeza e cortesia de “pedalada”. Se quer usar o dinheiro do calote (do não tempestivo pagamento a diversos servidores e prestadores) para pagar outros servidores (os atuais), em detrimento de quem espera há anos por uma “justa” e adequada recomposição.

Precatórios, para quem não tem familiaridade, é uma dívida reconhecida judicialmente em que se determina ao Estado que pague algo que deixou de ser pago no tempo certo. Referem-se, por exemplo, a menores que teriam direito a uma pensão por falecimento de pais, mas tiveram o benefício negado pelo Estado, total ou parcialmente, deixando-os desamparados. É o direito de um aposentado que teve reduzido indevidamente o valor de benefício, comprometendo, na maior parte das vezes, suas condições mínimas de subsistência. É um terceiro que vendeu ou prestou um serviço para o Estado e não recebeu, mesmo com o reconhecimento tempestivo da realização do serviço ou da entrega do bem, o que levou muitas vezes a quebrar sua empresa, impondo-lhe dívidas fiscais e trabalhistas que, talvez, nunca tenham sido superadas.

A propósito, o precatório, em grande parte das vezes, não se refere a discussões sobre direitos, eles são gritantes e/ou já reconhecidos, como uma nota fiscal atestada e um empenho liquidado, como a correção de determinado erro “daqui em diante”, mas sem acertar o “pra trás”, decorrência lógica da correção. Infelizmente, esse penoso caminho judicial é o único percurso que resta ao indivíduo a levar o Estado a pagar aquilo que lhe deve. E mais, a despeito de todo o tempo envolvido nessas demandas, de empresas e indivíduos deixados em situação penosa, ao final ainda tem os custos de um processo judicial, como os honorários advocatícios que geralmente abocanham 20% do precatório.

Enfim, a proposta do governo é indecente e pejosa, só alguém imperturbável, inclemente e cruel seria capaz de consentir com algo tão infesto, quando deveriam se utilizar das indecorosas rubricas destinadas, por exemplo, ao orçamento secreto, fundos eleitorais e partidários, num país demasiadamente salteado.

* Escrito por Rogério de Almeida Fernandes, Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE), Graduado em Contabilidade pela Universidade Federal da Paraíba e em Direito pela Faculdade dos Guararapes. Pós-graduado em Direito Público com foco no Controle Externo pela Escola da Magistratura de Pernambuco. Coautor do livro Vereadores (Reflexões acerca dos entendimentos dos Tribunais de Contas e Cortes Judiciárias).

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