O que é o PLP 257/16?

Os protestos contra o Projeto de Lei Complementar 257/16 tomaram conta das redes sociais e incendiaram o noticiário nos últimos dias. Sindicatos de servidores públicos deslocaram suas tropas e estão em estado de vigilância junto à Câmara dos Deputados. Mas o que significa esse projeto? O que motiva tamanha preocupação dos servidores públicos?

O citado projeto tem por objeto o Plano de Auxílio aos Estados e ao Distrito Federal e medidas de estímulo ao reequilíbrio fiscal, alterando algumas legislações, dentre elas a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O Governo Federal condiciona a concessão do auxílio aos estados à adoção de medidas fiscais por parte dos Estados, como ocorre em todo e qualquer lugar do mundo, e para isso propõe um compromisso legal sobre o tema.

Embora existam pontos que exijam ponderação ou amadurecimento, a essência do projeto é compreensível e absolutamente necessária, é a mesma que levou à concepção da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Mas como muito bem coloca o Presidente da Câmara dos Deputados, as exigências do governo “reafirmam o que já está na lei, acho inócuo. Não precisamos de um embate aqui por um tema que, graças a Deus, já está na lei e que, infelizmente, muitos poucos estados cumpriram”. É exatamente isso, já está tudo na lei, mas a grande maioria descumpre.  Não tem aquele “quer que eu desenhe?”. O governo está desenhando.

Para economistas e analistas de contas públicas, é fato que o Estado Brasileiro, nas três esferas, abusou da irresponsabilidade fiscal, da criatividade remuneratória, de manobras contábeis e do desequilíbrio financeiro. O projeto surge exatamente para tentar conter a algazarra nas contas públicas, e resgata a intenção inicial da Lei de Responsabilidade Fiscal, que surgiu num contexto de elevado déficit existente no país, como agora, e instituiu regras de equilíbrio fiscal, a partir, dentre outras, do estabelecimento de limites de gastos com despesas de pessoal para União, Estados e Municípios, bem como para os Poderes e Órgãos independentes.

No início, houve respeito à Lei, mas o tempo se encarregou de permitir algumas astúcias por parte daqueles que queriam obter aumentos, a despeito da capacidade do Estado, muitos deles bem acima da inflação, mas que esbarravam nos tetos estabelecidos não apenas pela LRF, mas também pela Constituição Federal.

Alguns Estados passaram a oferecer “interpretações” sobre rubricas que não mais seriam consideradas nas despesas com pessoal, permitindo, com isso, a concessão dos desejados reajustes. E a cada momento que o desejo esbarrava no limite, partia-se para uma nova “interpretação”. Exemplo disso é o Tribunal de Contas da Paraíba (TCE-PB), que permitiu que os órgãos independentes expurgassem do cálculo do limite de Despesa com Pessoal os valores relativos ao Imposto de Renda descontado dos servidores (Parecer Normativo PN TC nº 05/04), quando a lei não permite. Em seguida, orientou o abatimento dos valores relativos à contribuição previdenciária patronal dos servidores (Parecer Normativo PN TC nº 12/07), mas essa ressalva também não está no corpo da lei. Além destes, permitiu também a exclusão, na conta, dos valores dos inativos de cada Poder.

Só para ter ideia do impacto de tais “interpretações”, tomamos como exemplo um órgão como o Ministério Público Estadual. Este possui um limite de despesa com pessoal de 2% da Receita Corrente Líquida, e uma vez excluído da conta a parcela de Imposto de Renda descontado de seus servidores, cuja massa é formada de Promotores e Procuradores de justiça, esse benefício dá um folga de mais 20% no cálculo de pessoal. A depender do Estado que esteja inserido esse Ministério Público, pode-se ter ainda uma folga adicional de mais 20 a 27%, relativos à contribuição patronal, como foi o caso da contribuição patronal de Pernambuco, que esteve fixada em 27%. Só essas duas exclusões da conta, abre-se uma janela de mais mais de 40%. Não há como deixar de reconhecer que o limite estabelecido pela LRF foi completamente desfigurado.

Esse modelo de interpretações criativas foi sendo ampliado paulatinamente em métodos e por vários Estados. Sempre foi uma preocupação a utilização desses métodos, tanto por se distanciar do preconizado pela lei, mas também porque não se tinha mais como verificar a real situação das Despesas com Pessoal em determinados Estados e Órgãos independentes. O que se divulga não passa perto da verdade. Há Estados que informam uma Despesa com Pessoal de 70% da Receita Corrente Líquida (o limite seria de 60%), mas há outros que divulgam algo próximo de 50%. Mas qual a metodologia que eles utilizam?

O método de exclusão de rubricas da Despesa com Pessoal se esgotou, sendo necessárias novas fórmulas. Passaram então a surgir então as chamadas parcelas indenizatórias (algumas poucas já existiam, mas em valores moralmente aceitáveis). Mas só bastou a “brecha” e o exemplo para que, a partir daí, houvesse uma larga pulverização delas. Auxílio alimentação, auxílio creche, auxílio educação, auxílio saúde, auxílio transporte, o mais recente auxílio moradia, entre outros. Nada disso vai para Despesa com Pessoal, mas deveria. Além disto, são valores pagos por fora do teto remuneratório do serviço público (hoje, R$ 33.763,00), por serem consideradas parcelas “indenizatórias”, quando, muitas vezes, senão quase todas, não guardam de fato qualquer relação com uma verba de natureza indenizatória, que: 1) pressupõe prestação de contas; 2) é eventual, nunca permanente; 3) que está ligado a um fato e não a uma pessoa; e 4) que serve para indenizar um servidor por algo que o servidor não estaria obrigado a fazer, mas o fez por imposição eventual do Estado. Exemplo claro de uma legítima parcela indenizatória é a diária (não vamos entrar na polêmica sobre a razoabilidade de alguns valores fixados).

Reportagem da Revista Época (Juízes estaduais e promotores: eles ganham 23 vezes mais do que você, publicada em 16/06/2015) revela, por exemplo, o pagamento de auxílio moradia aos magistrados e promotores no valor de R$ 4.377,00; auxílio alimentação de R$ 3.047,00, para promotores do Maranhão; auxílio creche de R$ 854 por filho até 06 anos e auxílio educação de R$ 953,00 por filho até 24 anos (na faculdade), para os magistrados do TJ-RJ; auxílio para os magistrados de Minas Gerais, que recebem mais 10% do salário para custear a saúde (até R$ 3.047,00 à época). Também em Minas, os promotores têm direito de R$ 13 mil a R$ 15.235 por ano para livros jurídicos e materiais de informática, embora o TJ-MG afirme que a despeito da previsão, o auxílio não é pago. Os promotores do Rio de Janeiro recebem mais R$ 1.100 para transporte. Com isso, a citada reportagem apontou que, à época, o salário médio de um juiz e promotor seria de R$ 40 mil, e dos chefes do Judiciário poderia chegar a R$ 59,9 mil.

Esses valores são da época da reportagem, mas houve reajuste dos salários da magistratura e dos promotores em janeiro deste ano, e esta semana (em 03/08/2016), a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou outro reajuste, a remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) passará para R$ 39,2 mil. Esse reajuste, com base numa interpretação bem conveniente, possui efeito cascata sobre os demais Tribunais do país. Lembremos que há tribunais que instituem auxílios em percentual, por exemplo, de 10% sobre essa remuneração. O auxílio alimentação de alguns, que ano passado era de R$ 3.047,00, poderá chegar próximo de R$ 4 mil. Só para ter ideia, esse valor corresponde a quase duas vezes o piso de um professor (R$ 2.135,64), no caso de este professor estar vinculado a uma jornada de 40h semanais. Se a carga horária for menor, a redução é proporcional.

Esse cenário de concessão de inúmeros penduricalhos não se resume aos Ministérios Públicos e Tribunais de Justiça, nem apenas aos juízes e promotores. Servidores destes órgãos, embora de forma bem mais “módica”, também recebem alguns benefícios. Há órgãos que fazem uso dessas verbas de forma acentuada, mas há outros de instituem um ou outro auxílio com moderação. Apenas o inconveniente e incompreensível auxílio moradia é que parece ser uma tônica no país, com pagamento, inclusive, para aqueles que residem na capital ou nas grandes cidades, mesmo tendo residência própria. É comum encontrar Tribunais de Contas, Defensorias Públicas e Assembleias Legislativas prevendo benefícios semelhantes para seus membros e servidores, em valores e quantidades bastante diversificadas.

Mas a temporada de drible aos tetos remuneratórios e aos limites da LRF não encerrou e a tendência é de ampliação, por questões óbvias, por não se sujeitarem a qualquer limite. A prática chegou ao Executivo, que passou a considerar indenizatórias as verbas de representação de cargos comissionados e funções de confiança. Não há limite, e essa prática é um círculo sem fim. A cada passo dado por um ou alguns, outros tendem a buscar algo em seus benefícios, para “compensar”.

A propósito dos Executivos, os Estados fazem uso cada vez mais crescente de Organizações Sociais (OS) na prestação de serviços essenciais ao Estado, sem contabilizar os valores no gasto com pessoal, outra burla. Pernambuco, por exemplo, entregou 32 unidades de saúde às Organizações em 2014, destinando R$ 709 milhões, valor quatro vezes maior do que fora direcionado em 2010. Os valores gastos com as OS, ainda que destinados à contratação de profissionais em substituição ao quadro permanente, não são, na prática, contabilizados como Despesa com Pessoal, quando deveriam ser, conforme previsão da LRF e de normativo do TCE-PE, que não é respeitado. O PLP 257/16, nesse ponto, busca, tão somente, trazer ao limite de Despesas com Pessoal os gastos com “terceirizações” que substituem servidores do quadro efetivo. Não se trata, portanto, de qualquer terceirização.

No âmbito municipal, a terceirização também teve seu contingente bastante ampliado. E mesmo sem considerar tais gastos no limite, dos 184 municípios de Pernambuco, 128 estão acima do limite de Despesa com Pessoal. Há município com mais de 80% da Receita Corrente Líquida com Despesa com Pessoal. Há prefeito afirmando, de forma escrita, que a Prefeitura teve que acolher o povo que sofre com a seca, inserindo-o na folha da Prefeitura. Na Paraíba, de janeiro a abril deste ano, as 223 prefeituras e as 223 Câmaras Municipais contrataram mais de 81 mil servidores, conforme levantamento do Tribunal de Contas do Estado, encaminhado à justiça eleitoral.

Muitos governantes, no último ano de suas gestões, aprovam generosos planos de cargos e reajustes de servidores com efeitos financeiros para vários exercícios seguintes ao fim de seu mandato, deixando uma conta pesada para o próximo gestor, concebida, na grande maioria das vezes, de forma irresponsável, com impactos financeiros muito além da capacidade fiscal e financeira de determinado ente. O novo gestor, por sua vez, passa sua gestão sufocado pelos planos de cargos do antecessor e, ao final do seu mandato, concede os seus planos, “condenando a próxima gestão”, e assim sucessivamente. Há caso que nos 08 primeiros meses da nova gestão, as Despesas com Pessoal sofreram incremento de mais de 20% em razão desses acordos realizados no apagar das luzes.  Essa conta é impraticável.

É impossível não reconhecer a algazarra com o dinheiro público, sobretudo, a realizada nos últimos anos. É impossível não reconhecer que grande parte dos servidores públicos (sobretudo as categorias mais prestigiadas) tiveram reajustes salariais bem acima da inflação, muito além da capacidade fiscal e financeira do ente. A conta do excesso chegou, e junto com ela a crescente demanda por serviços públicos básicos como saúde, educação e segurança, em razão da crise que abate o país, com um número de desempregados cada vez maior e mais dependente desses serviços essenciais.

Como imaginar que um Estado ou uma Prefeitura que gaste 70% de sua Receita Corrente Líquida com Pessoal será capaz de honrar todas as suas despesas correntes (gasolina, energia, medicamentos, merenda, água, material de expediente, etc.). E mais, pagar os juros, encargos e amortizações de suas dívidas, fazer investimentos. Sem investimentos (estradas, portos, etc.), o país não voltará a crescer, nem haverá emprego em nível razoável. Postos de saúde, escolas, entre outros, são demandas cada vez mais necessárias, mas a preocupação se restringe apenas aos salários dos servidores, ou pelo menos de determinadas categorias. No médio e longo prazo, com o controle do gasto de pessoal e a retomada dos investimentos, todos serão beneficiados, mas como é difícil abrir mão do “meu” e do hoje, em beneficio do geral e do amanhã.

Como consequência do excesso nos gastos com pessoal, o Estado tem financiado seus poucos investimentos por meio de empréstimos, mas a situação do país, desequilibrado e endividado, não mais permite a utilização indiscriminada dessa receita. A conta disto já chegou, e é pesada. O Estado de Pernambuco, por exemplo, gastou em 2014 R$ 1,08 bilhão de juros, encargos e amortização da Dívida Pública, o equivalente a 5,84% da Receita Corrente Líquida. Mas a perspectiva é de piora com tendência de aumento gradativo do comprometimento. No caso das prefeituras, adiam-se os compromissos, deixa-se de recolher, por exemplo, a previdência de seus servidores, assumindo um passivo devastador, impondo parcelamentos que irão comprometer as finanças municipais por vários anos.

Em síntese, o PLP 257/16, no tocante aos ajustes propostos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), busca, tão somente, resgatar a essência desta lei, completamente perdida. Os gastos com pessoal estão muito acima do limite, os valores publicados não são reais. Enquanto que os órgãos independentes fizeram uso de pontes criativas para aumentar a remuneração de seus servidores, o Executivo lançou mão das Organizações Sociais e terceirizações.  Alguns Estados, mas, sobretudo os municípios, ainda continuam realizando contratações, em absoluto desrespeito às regras de impedem contratações quando os gastos já se encontram acima do limite.

Como consequência do descontrole com os gastos com pessoal, o resultado é o comprometimento da capacidade financeira do Estado e redução drástica dos investimentos. Serão inevitáveis as pedaladas, que já ocorrem com bastante relevância nos Estados e Municípios. Matéria do site “apublica.org” revela que “pelo menos 17 Estados pedalaram impunimente” entre 2013 e 2014, de 20 Estados pesquisados.

Muitos propagam que as propostas terão efeito devastador sobre os servidores públicos das três esferas de governo. Outros afirmam que o projeto sepulta a Lava Jato e amordaça o Ministério Público e a Justiça, mas isso não é verdade. Efeito haverá, mas o ajuste, além de necessário, visa tão somente corrigir a bagunça que foi criada. Assim, o efeito será proporcional à bagunça que cada um fez com seus limites e suas finanças.

O grito dos servidores públicos (em regra) faz parte de uma cultura enraizada no Brasileiro. “É cada um por si, o Estado é nosso, e quem tiver mais força que tire dele o que for possível”, e não há, em regra, quem pense no coletivo. Servidor público tem que ser bem remunerado, mas dentro da capacidade financeira e fiscal, e dentro da legalidade e da moralidade pública.  É inconcebível aceitar que o Estado exista para, em primeiro lugar, servir seus servidores, impedindo que se retomem os investimentos necessários ao crescimento do país, que possui quase 12 milhões de desempregados.

Como já dito, embora existam pontos que exigem ponderação ou amadurecimento, a essência do projeto é absolutamente compreensível e necessária. Lamentavelmente, o Governo é pressionado a rever alguns pontos cruciais ao equilíbrio fiscal. Na última segunda-feira (01/08/2016), foi apresentado um substitutivo combinado entre o Deputado Amim e o Governo. O substitutivo flexibiliza a regra das Despesas com Pessoal, mas estabelece o período de 10 anos para que o Poder ou Órgão corrija esse emaranhado de distorções e erros que eles mesmos criaram. Mas há quem queira não só manter, mas ampliar os equívocos. Aqueles que assim fizerem, se a regra proposta for aprovada, terão que acertar uma conta maior lá na frente.

Estamos onde estamos pelos abusos cometidos, e que são claros. Não se pode fazer usos dos erros e excessos para justificar sua manutenção. Nada do que está sendo proposto de ajuste da Lei de Responsabilidade Fiscal seria necessário se não tivéssemos abusado da irresponsabilidade fiscal, da criatividade remuneratória, de manobras contábeis e do desequilíbrio financeiro.

Não poderia deixar de registrar, por fim, minha solidariedade com algumas categorias que, a despeito da gastança realizada, ainda permaneceram esquecidas. Não há exemplo maior que os professores que lutam, todos os anos, para garantir o pagamento do piso salarial da categoria, no valor de R$ 2.135,64. Sou servidor público, gostaria muito que meu salário aumentasse exponencialmente a cada ano, mas, antes disso, tenho o compromisso profissional e a capacidade de reconhecer, como especialista em contas públicas, que ou fazemos algo agora, corrigindo os excessos/erros/equívocos, ou a temporada de criatividade continuará circulando pelos altos escalões do serviço público, em desapego à moralidade e ao ordenamento jurídico em vigor.

* Escrito por Rogério de Almeida Fernandes, Auditor do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE), Graduado em Contabilidade pela Universidade Federal da Paraíba e em Direito pela Faculdade dos Guararapes. Pós-graduado em Direito Público com foco no Controle Externo pela Escola da Magistratura de Pernambuco. Coautor do livro Vereadores (Reflexões acerca dos entendimentos dos Tribunais de Contas e Cortes Judiciárias).

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