Artigo: Contas, Ficha Limpa e “Qualunquismo”

“A democracia não corre, mas chega segura ao seu objetivo”. (Goethe)

Há momentos que marcam a história de um país. Em se tratando de democracia no Brasil, depois das “Diretas-Já” e do “Impeachment de Collor”, a mobilização popular que culminou com a aprovação da Lei Ficha Limpa foi mais uma prova do nosso amadurecimento institucional e democrático. Também é um indicador de que o cidadão considera o comportamento ético e o desempenho administrativo dos candidatos, atributos indispensáveis ao exercício do mandato.

Nesta reflexão, ressalto um aspecto da Lei: as novas regras sobre a inelegibilidade de gestores públicos que tiveram contas rejeitadas pelos Tribunais de Contas (TCs). Antes, porém, é preciso clarear o papel dos TCs nessa questão. A rigor, não são os TCs que declaram a inelegibilidade. A eles cabe o exame periódico das contas dos gestores, que se concretiza por meio de processo administrativo, garantida ampla defesa. Comprovando-se falhas graves em razão de afronta aos princípios constitucionais da administração pública, o Tribunal julga as contas dos gestores “irregulares”, podendo, ainda, impor-lhes sanções. Afora essa competência constitucional ordinária, a lei eleitoral determina que os TCs, antes de cada eleição, enviem à Justiça Eleitoral a lista com o nome daqueles que, nos últimos oito anos, tiveram contas rejeitadas e que sobre estas não caibam mais recursos no órgão. A primeira e boa inovação da nova Lei foi aumentar de cinco para oito anos o interstício a ser considerado. A segunda foi exigir que, para evitar a inelegibilidade, não basta, como antes, o mero ingresso do gestor na Justiça Comum questionando a decisão do TC, mas sim uma decisão judicial que suspenda ou anule o veredicto do órgão de controle. Deixar claro que os detentores de mandatos (prefeitos, por exemplo) que assumem a função de ordenar despesas inserem-se na órbita de julgamento dos TCs também foi um importante avanço. Nada obstante, há um ponto da nova Lei que preocupa e exigirá novamente da Justiça Eleitoral, sob pena de manifesto retrocesso, uma postura interpretativa que confira efetividade a essa hipótese de inelegibilidade. Decerto que há decisões dos TCs que, sopesadas ao direito natural do cidadão à elegibilidade, não têm o condão de impedir candidaturas. Esse juízo de valor seletivo, a cargo da Justiça Eleitoral, já era feito antes da nova Lei quando condicionava a inelegibilidade à constatação de que as irregularidades apontadas pelos TCs se enquadravam na lei de improbidade administrativa. O risco trazido pela nova Lei está em exigir que esta irregularidade seja classificada como improbidade administrativa “dolosa”. Ora, os TCs, com os instrumentos de fiscalização de que dispõem, dificilmente conseguem aferir intenção ou má-fé nos erros cometidos pelos gestores. Com efeito, a seara da subjetividade é mais afeita aos ilícitos de natureza penal e é por isso que a interpretação no campo administrativo-eleitoral há que se basear, ao menos, no conceito mais amplo de dolo, especialmente o de dolo eventual, que não exige intenção deliberada, mas tão somente a consciência de que, ao agir ou se omitir em certas situações – como, por exemplo, deixar de estruturar o sistema de controle interno – , o gestor estará assumindo o risco de cometer irregularidades. Em todos os países democráticos existem legislações, como a nossa, que buscam estabelecer requisitos para o exercício do mandato. Sem ignorar a importância dessas regras, há que se reconhecer que é o cidadão, por meio do voto soberano, quem possui o mais poderoso instrumento para selecionar os seus representantes e melhorar a qualidade da democracia e da gestão. Contudo, é preciso evitar o fenômeno que Bobbio chamou de “qualunquismo”, que é a descrença na política, levando os cidadãos a não mais diferenciarem os líderes e a votarem “em qualquer um”. Mirando-se no exemplo dessa brava gente que lutou pela aprovação da Lei Ficha Limpa, que tal, você mesmo, cidadão- (e) leitor, começar a comparar os candidatos a partir de um exame mais profundo do comportamento administrativo daqueles que estão nas listas enviadas pelos TCs à Justiça Eleitoral? Antes de uma opção, trata-se de um dever da cidadania.

Valdecir Pascoal // Conselheiro-Corregedor do TCE-PE

Fonte: Diário de Pernambuco, Opinião, 30/06/10

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