O Brasil dos não caminhoneiros

A liberdade de manifestação e expressão não pode inviabilizar o direito de toda a população brasileira de acesso a outros direitos fundamentais.

Passados 10 dias do início do movimento que paralisou o país, muitas lições podem ser tiradas. A primeira passa pelo evidente interesse pessoal que levou parte da sociedade ao apoio apressado ao movimento dos caminhoneiros. Alguns, movidos pelo sentimento de que a greve traria redução do preço da gasolina, logo se disseram a “favor” dos caminhoneiros. Outros, desprezando qualquer consequência, inclusive contra si, vibraram com a janela de oportunidade que surgia para agredir o governo impopular e/ou golpista, fazendo valer o “quanto pior, melhor”. Um terceiro grupo, no “conforto” da falta de qualquer informação, sucumbia ao efeito manada e sequer compreendia o que estava acontecendo. Aliás, houve até comemoração, a exemplo de alguns servidores públicos que curtiam a suspensão de alguns dias de expediente, enquanto que os universitários, o cancelamento das aulas.

Em nenhum momento o preço da gasolina foi sequer objeto de discussão, não trazendo o sonhado benefício ao primeiro grupo. Quanto ao cunho político, o governo, que não governa mais, já abatido por mérito próprio, terminou humilhado em razão da ausência de comando e autoridade. Esse grupo saiu “forte”, entusiasmado. Os que dançavam sem saber da música, em pouco tempo perceberam que a festa iria sair cara, sobretudo quando os fatos bateram as suas portas.

O Governo Federal, sem o apoio dos Estados, que cobram 29% sobre o preço dos combustíveis, entregou os dedos antes dos anéis. Ao zerar a CIDE e reduzir o PIS/COFINS, criou um rombo de R$ 4 bilhões no orçamento, sendo parte coberto pela reoneração da folha de 28 setores da economia. Some-se ainda o subsídio concedido ao preço do diesel, uma conta que, na matemática do governo, pode chegar a R$ 9,5 bilhões, totalizando, assim, R$ 13,5 bilhões.

Segundo economistas, a exemplo dos cálculos apresentados pelo Itaú Unibanco, se a cotação do dólar e o petróleo se mantiverem no mesmo patamar, o custo anual dos subsídios concedidos chegaria a R$ 23 bilhões. Apenas em 2018, cujo déficit fiscal (governo federal) já é de R$ 157 bilhões, pode chegar aos R$ 170 bilhões. Esse buraco tem sido “tampado” por empréstimos, tendo como pagador e fiador o contribuinte. Fingir que a conta não existe não vai fazê-la desaparecer.

E essa é apenas parte da conta. A arrecadação geral dos governos (federal, estadual e municipal) será afetada, em razão do impacto na atividade econômica do país. No momento que escrevo esse texto, assisto, ao vivo, às 12h do dia 30/05/2018, o Secretário de Planejamento do Estado de Pernambuco, Márcio Stefanni, informar que o prejuízo na economia do Estado já é de R$ 1,2 bilhão, enquanto que o impacto na arrecadação é de R$ 235 milhões.

Dados iniciais estimavam um prejuízo à economia do país de R$ 10 bilhões. Entretanto, números divulgados posteriormente por 13 segmentos da economia já apontam perdas de R$ 50 bilhões. A Fundação Getúlio Vargas, ampliando a sondagem, estima que o prejuízo total da greve ultrapasse os R$ 100 bilhões. As perdas mais sensíveis e imediatas são na cadeia alimentar. Os serviços duráveis, embora tenham impacto menor, repassará o custo da paralisação do setor ao produto.

De acordo com a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), 235 mil trabalhadores ficaram parados, 70 milhões de frangos sacrificados e quase 30 milhões de suínos (dados de 28/05/18).  A Associação alertou ainda que 01 bilhão de aves podem morrer por falta de ração. Milhares de litros de leite estão sendo descartados, além de outros tantos derivados do produto. Milhares de toneladas de alimentos também sendo inutilizados, a exemplo de 300 mil caixas de limão de 27 kg que já foram parar nos lixos. Os danos ambientais e sanitários são incalculáveis. Apenas para contextualizar, 13,35 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza (critério do Banco Mundial), ou seja, o que já foi sacrificado equivale a 5,2 frangos e 2,2 suínos por cada pessoa que vive abaixo da linha de pobreza no país. Ministério da Agricultura estima que o setor de aves pode levar até 02 anos para se recuperar.

Companhias áreas relatam 50 milhões de prejuízos por dia. O impacto no comércio chega, em alguns casos, a 80%. R$ 270 milhões de prejuízos às empresas de capital aberto na bolsa de valores (até o fechamento do dia 28/05).

Demissões já estão sendo anunciadas. A propósito, dentre as sugestão apresentadas ontem pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), como possível forma de redução dos preços da gasolina, a eliminação dos frentistas é uma delas, o que levaria ao campo do desemprego milhares de pessoas. A proposta do CADE foi recebida com entusiasmo por aqueles que sonham com a redução do preço da gasolina, ainda que não se tenha qualquer dado financeiro de qualquer das alternativas apresentadas pelo Conselho.

No Estado de Pernambuco, 80 municípios decretaram estado de emergência (44%). A falta de medicamento é alarmante. Há registros de pacientes da UTI sendo transferidos em carros particulares em razão do oxigênio que não está sendo abastecido, e a ambulância não tem combustível. Escolas públicas com aulas suspensas em razão da falta de merenda e do transporte escolar (aluno sem refeição e motorista do transporte sem receber, uma vez que a grande maioria dos contratos é pago por quilometro rodado). Prefeituras suspenderam a limpeza urbana, o transporte fora do domicílio (TFD) dos pacientes. Cirurgias eletivas canceladas. Tratamento de câncer, hemodiálise, entre outros, suspensos.

Em Boa Vista, passageiros não conseguem embarcar, a exemplo de uma mãe que aparecia numa reportagem com uma criança de colo. Voos foram cancelados em vários aeroportos. No Recife, um grande amigo teve seu voo para o exterior cancelado, perdendo diárias de hotel pagas, aluguel de carro e dias de suas férias.

A população mais carente sente a alta e, posteriormente, a falta do gás de cozinha, a alta e a falta dos alimentos. Em Recife, famílias estão usando lenha para o preparo de alimentos. Diversos prédios residenciais já estão sem gás. O tempo de espera para aqueles que se aventuram no transporte público é enorme. O pequeno trabalhador afetado, o vendedor de comida na rua, o marceneiro, o balseiro, o lavador de carro, todos. A população deixa de ir ao dentista, ao médico, a diarista não consegue chegar ao trabalho, etc. Qualquer comerciante de rua ou estabelecimento relata grandes prejuízos.

De imediato, os consumidores sentirão preços mais altos nas feiras e supermercados quando o abastecimento for restabelecido. Os fretes também ficarão mais caros, uma vez que o governo aceitou uma tabela com preço mínimo do serviço, valor que será repassado para todos os produtos transportados no Brasil. Some-se a isso o custo da reoneração da folha de pagamentos de 28 setores, que também será repassado.

Enfim, previsão de crescimento do PIB reduzido (alguns apontam para queda de quase 0,5%). Previsão de inflação aumentada. Juros e dólar fechando o ano maior que o previsto. A conta é elevada, e vai muito além do “simples” caos da greve.

Caminhoneiros que tentam voltar ao trabalho são hostilizados. Várias cenas de vandalismo foram registradas, caminhões depredados, até vídeo de caminhoneiro sendo assassinado, por ter furado o bloqueio, nós assistimos.

Essa é uma síntese apertada das consequências do “movimento” dos caminhoneiros. O que era um pleito legítimo se transformou na absoluta anarquia e baderna, um show de insensatez e falta de dever cívico.

As lições que pudemos tirar são muito ruins. Num momento de tamanha escuridão no Brasil, prevaleceu o interesse individual e o oportunismo. Esse caminho não me seduz. Jamais farei coro a tamanho massacre social e econômico. Continuarei relutante, caminhando na direção da ordem e na contramão do discurso fácil, histérico e sem compromisso, ainda que sob a companhia de poucos.

Não chegaremos a lugar algum se não avançarmos nas reformas que o país exige. Temos uma previdência que apresenta rombo de R$ 200 bilhões por ano (apenas o Regime Geral e o Próprio da União), exatamente porque não a enfrentamos adequadamente e no tempo oportuno. Adiá-la não resolve o problema, muito pelo contrário, mantém os erros que a acomete, lançando para frente uma conta ainda maior para ser resolvida, e em piores condições. Temos a reforma tributária, que poderia simplificar o sistema, que não avança há anos. Temos a imperiosa necessidade de discutir o formato e o modelo de Estado, hoje gigante e ineficiente, uma solução perfeita para o caminho da corrupção. Sem a redução do tamanho do Estado, não podemos falar em redução da carga tributária, é incompatível esse desejo.

Temos uma infraestrutura que inviabiliza a atividade econômica do país. Apenas para exemplificar o hiato que temos em relação a outros países, o Brasil tem 211 mil quilômetros de rodovias pavimentadas, apenas 12,2% da malha, enquanto os EUA possuem 4,3 milhões e a China 4 milhões. Países como Chile, Uruguai e Argentina estão em condições melhores que a nossa. Mas como financiar as melhorias necessárias se não avançamos em nada que é que preciso enfrentar?

Tem uma frase de Millôr Fernandes que muito bem sintetiza o momento atual que o país passa: “o Brasil tem um enorme passado pela frente”.

* Escrito por Rogério de Almeida Fernandes

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