A Constituição Federal de 1988, acertadamente, estabeleceu uma fronteira para conter as operações de créditos, um gatilho que é acionado quando o paÃs bate a porta do abismo.
O premente descumprimento da regra de ouro, um comando que impede que o governo tome empréstimos para arcar com despesas correntes, acende mais um alerta sobre a saúde das contas públicas do Governo Federal e abre uma nova discussão de importante repercussão fiscal para o paÃs. Como bem adverte a economista e professora da UFRJ, Margarida Gutierrez, “pode ter apagão dos serviços públicos e começar a não pagar aposentados, por exemplo, como a gente já começou a ver nos estados†(1).
É importante deixar claro que a regra de ouro, prevista no art. 167, inc. III, da Constituição Federal, não impede que sejam realizadas operações de crédito para financiar despesas públicas. Permite-se que tais operações sejam realizadas até o limite das despesas de capital. Ao ente público é autorizado endividar-se para adquirir um bem ou construir algo que possa ser utilizado durante anos pelo ente ou pela população. A lógica é jogar para gerações futuras os custos desse empréstimo porque será ela a beneficiada pelo investimento de agora.
Veda-se, por outro lado, que o montante advindo de empréstimos financie despesas de hoje, de custeio e manutenção, como salários, luz, água, entre outros, salvo situações excepcionais e devidamente autorizadas pelo próprio texto constitucional. Não é razoável que gerações futuras arquem com os encargos para cobrir despesas correntes atuais, que não geram frutos e benefÃcios futuros que por elas possam ser usufruÃdos.
Não é muito lembrar que nossa história possui cicatrizes que deixam clara a necessidade de uma fronteira para as operações de crédito. No passado, antes da CF/88, os governos, em todos os nÃveis (federal, estadual e municipal), rotineiramente desafiavam a lógica que está por trás da regra de ouro. Pegava-se empréstimo “hoje†para pagar folha de pagamento e despesas correntes de “ontem†(em atraso). “Amanhã†se tinha a mesma despesa a honrar, acrescida dos encargos daquele empréstimo realizado, com a receita que já não era suficiente. Era empréstimo seguido de empréstimo. A conta aumentando e sendo rolada para frente.
O paÃs chegou ao ponto de não ter mais forças para rolar sua volumosa dÃvida, sentindo fortes restrições do mercado para obter recursos, com o custo dessas operações cada vez maiores. O Governo Brasileiro era um pródigo nas mãos de uma agiota. Para reverter esse cenário, restrições orçamentárias e financeiras foram impostas pela CF/88, posteriormente reforçadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101/2000).
Sob a orientação de uma rÃgida disciplina legal, ajustes fiscais importantes foram realizados. Passamos a adotar a receita básica, economizar recursos correntes para amortizar nossa dÃvida e realizar investimentos, buscando contornar nossa péssima reputação. O custo Brasil foi sendo reduzido gradualmente.
Tempo depois, abriu-se a temporada de artimanhas contábeis por todo o paÃs, truques que maquiam indicadores importantes, prática que teve seu inÃcio bem antes das conhecidas pedaladas fiscais. Um dos indicadores objeto de maquiagem e afrouxamento fiscal foi o resultado primário, que consiste na obtenção de um saldo positivo entre as receitas e despesas do governo, excetuando gastos financeiros (como o pagamento de juros). A ideia é economizar recursos para amortizar e reduzir a dÃvida pública. Por consequência, reduzir a proporção dos encargos dessa dÃvida no futuro, prática que, em boa medida, vinha sendo realizada.
Com a maquiagem, passamos então a apresentar um resultado primário positivo (falso), com governo excluindo da conta contábil, do lado das despesas, algumas rubricas. Em outras palavras, o Governo dizia ter 100 de receita, 100 de despesa, o que se teria um saldo “zeroâ€, mas para fins de demonstração de superávit primário, excluÃa artificialmente algumas despesas desse cálculo, apresentado um saldo positivo contábil, que financeiramente não existia e que poderia, inclusive, ser negativo. Ou seja, “na foto†o Governo afirma ter um resultado positivo, mas financeiramente esse valor não existia, fazendo com que o instituto do resultado primário não servisse mais a sua finalidade. Essa prática foi replicada nos Estados, a exemplo do Estado de Pernambuco, devidamente registrada pela auditoria do TCE-PE em vários relatórios, a exemplo dos Processos TC n.º 15100188-1 e 16100001-0.
Passos adiante, passamos a financiar nossos investimentos quase que tão somente por meio de empréstimos. E agora, o que se anuncia é que não apenas os investimentos dependam de empréstimos, mas sim da premente necessidade de tomar empréstimos para fechar o caixa corrente. Se nada for feito, voltaremos aquele estágio que já comentamos, com empréstimo seguido de empréstimo, e a conta aumentando e sendo rolada para frente.
Para o secretário geral do site “Contas Abertasâ€, Gil Castello Branco (2):
“Nada como um governo atrás do outro e uma crise fiscal no meio. Dilma tentou esconder a febre. Temer quer quebrar o termômetro. O problema, porém, é o desequilÃbrio fiscal, é o Estado gastar mais do que arrecada. Maquiar as contas públicas ou alterar as regras fiscais não gera recursosâ€.
Não há surpresas para aqueles que acompanham de perto o tema. O cenário vem sendo desenhado ano após ano. Com base nas declarações do próprio Governo, a regra de ouro só não foi descumprida já em 2017 porque o Governo contou com a ajuda do BNDES, que devolveu R$ 50 bilhões em recursos que foram emprestados à instituição em anos anteriores. Em 2018, outros R$ 130 bilhões serão também devolvidos pelo BNDES, não havendo riscos de a regra de ouro seja quebrada.
Sem os recursos do BNDES, a discussão teria ocorrido já em 2017. O problema esbarra no orçamento de 2019. O Governo sabe que a regra de ouro será, inevitavelmente, quebrada e está preocupado com a caracterização do crime de responsabilidade. O projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) para o exercÃcio de 2019 deve ser enviado ao Congresso até o dia 31 de agosto de 2018. O Governo não pode enviar a proposta descumprindo a regra de ouro.
Ontem, temendo rebaixamento das notas do paÃs, o Governo correu para conter os rumores sobre a quebra da regra de ouro e buscou explicar que a discussão em curso não seria de uma flexibilização pura e simples do instituto, e sim de um ajuste em sua concepção. A previsão é de que, havendo a quebra da regra de ouro, medidas seriam acionadas automaticamente, a exemplo do congelamento de algumas despesas, inclusive de aumentos aos servidores, e impossibilidade de concessão de novos subsÃdios.
Por amor ou pela dor, vamos ter que lidar com o problema. Não há solução mágica que contorne as consequências do forte desprestÃgio pelo qual o controle fiscal do paÃs passou na última década, ano após ano. A proposta de teto para os gastos públicos, aprovada no final de 2016, trouxe a esperança de que haveria uma mudança de rumo e que novos tempos de responsabilidade fiscal estariam porvir. Para maiores detalhes da importância desse assunto, acesse o texto.
Ocorre que impor uma fronteira para gastos não resolve. É preciso “operar dentro dos muros†e conter o crescimento dos gastos correntes, sobretudo os obrigatórios, que não param de crescer. Sem isso, inevitavelmente, as barreiras serão rompidas.
Isso passa, necessariamente, por um conjunto de reformas estruturantes e um forte apego à responsabilidade fiscal, caminho inverso ao que vem sendo adotado na última década. Uma das reformas estruturantes é a previdência. Não é uma alternativa, é uma necessidade, mas isso não significa que tenhamos que concordar com a proposta que fora apresentada, no todo ou em parte.
O grande problema é que não temos tempo, e essa agonia atropela o debate necessário para uma reforma que precisa ser aprovada para “ontemâ€. Em razão disto, vemos uma proposta da previdência sendo gradualmente desidratada, recebendo ataques daqueles que mais dela se beneficiam, transformando-se num campo fértil e um palco perfeito para polÃticos descompromissados com o paÃs, orientados majoritariamente pela obtenção de seus dividendos, polÃticos e financeiros. PolÃticos, em razão da leviana exploração da incompreensão popular acerca do tema; e financeiros, em razão da deliberada negociação de seus votos.
O atual Governo, por seu turno, prega prosperidade, mas pratica irresponsabilidade. Aumentos inoportunos, além da inflação, foram concedidos aos servidores públicos, por mais que os especialistas em orçamento e finanças públicas alertassem para o agravamento de um problema já existente – o crescimento das despesas correntes. Esse tipo de aumento traz importantes repercussões, pois amplia uma despesa obrigatória, com duplo alcance, impactando tanto a folha dos servidores ativos, quanto dos inativos, pois a maior parte dos servidores aposentados é coberta pelo manto da paridade e integralidade, um dos maiores vilões da previdência dos servidores públicos.
A lista de contribuições negativas do atual governo não para por aqui. Podemos citar também os benefÃcios aos devedores do Regime Geral de Previdência Social – RGPS (tanto aos entes públicos, quanto à s empresas), fazendo com que receitas previdenciárias deixem de ingressar nos cofres da União.
A situação das contas públicas do paÃs se complica dia após dia, o que, inevitavelmente, sufocará o futuro muito breve. Se nada for feito, teremos um paÃs amplamente endividado, com elevada carga tributária, vendendo tudo que tem ao setor privado, o único agente ainda capaz de realizar algo, mas que não se disporá a “entrar no barco†a qualquer custo, em razão do risco, este que sempre é pago também pelos próprios brasileiros. Esse filme nós já assistimos, e foi duro, não havendo um roteiro muito diferente a perseguir.
O futuro é tenebroso. Impõe-se ao paÃs uma pauta extensa de grandes desafios, e a solução não é fugir deles. Uma hora não haverá mais esconderijos. Agora, não é fácil imaginar que possamos avançar num governo que padece de uma debilidade moral e de um distanciamento social talvez nunca visto, e a que custo os avanços poderiam ser viabilizados.
Enquanto isso, o colapso das contas públicas busca refúgio na pouca compreensão do tema pela sociedade e na cortina de fumaça construÃda pela tÃmida retomada do setor privado, que, é bom que fique claro, não socorre uma relevante parcela da população brasileira, que depende exclusivamente dos serviços públicos.
Em sÃntese, a quebra da regra de ouro deixa evidente que a despesa não cabe mais no orçamento e que não teremos mais condição de sustentar o paÃs, sendo incapazes de manter em pé o que se tem, sem que se tenha que recorrer a empréstimos para tanto.
Para Selene Peres, uma das autoras da Lei de Responsabilidade Fiscal (3):
“Se o governo fosse uma famÃlia, estaria se endividando para pagar a conta de luz, os juros do cartão de crédito, etc. Quando o endividamento ocorre para fazer investimentos, é razoável, mas quando é para despesas correntes, torna-se insustentávelâ€.
Batemos a porta do abismo. Descumprir a regra de ouro não se trata de retrocesso, como alguns afirmam. Não é mais, a essa altura, um ato voluntário. É, na verdade, um encontro matemático inevitável, consequência lógica da irresponsabilidade fiscal. O debate já tem data marcada para reinÃcio, e será logo após a discussão da reforma da previdência, aprovada ou não.
Abre-se uma boa oportunidade para que os Tribunais de Contas reflitam sobre o tema e alertem os Estados e MunicÃpios para as consequências das maquiagens contábeis e da irresponsabilidade fiscal que por eles vem sendo praticadas, sobretudo no que se refere aos gastos com pessoal. Temos os exemplos de alguns Estados com graves dificuldades financeiras e atrasos de folha de pagamento. A União caminha para o colapso. Até quando teremos que aprender somente pela dor?
* Escrito por Rogério de Almeida Fernandes, Auditor do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE), Graduado em Contabilidade pela Universidade Federal da ParaÃba e em Direito pela Faculdade dos Guararapes. Pós-graduado em Direito Público com foco no Controle Externo pela Escola da Magistratura de Pernambuco. Coautor do livro Vereadores (Reflexões acerca dos entendimentos dos Tribunais de Contas e Cortes Judiciárias).
Notas:
(1)https://oglobo.globo.com/economia/sem-ajuste-2019-pode-ter-apagao-de-servico-publico-diz-especialista-22268012
(2)http://contasabertas.com.br/site/orcamento/alteracao-de-regra-de-ouro-nao-resolve-a-crise-fiscal-diz-castello-branco
(3)http://contasabertas.com.br/site/orcamento/alteracao-de-regra-de-ouro-nao-resolve-a-crise-fiscal-diz-castello-branco
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